Disrupção: Tudo com Raphael Rocha Lopes
A atriz Cleo Pires comparando imagens com e sem filtro no Instagram
“♫ Senão é como amar uma mulher só linda/ E daí? Uma mulher tem que ter/ Qualquer coisa além de beleza/ Qualquer coisa de triste/ Qualquer coisa que chora/ Qualquer coisa que sente saudade” (Soneto da mulher ideal, Vinícius de Moraes)
Nas idiossincrasias da vida, Vinícius se superou ao compor os versos acima e ao dizer, noutra obra, “Receita de mulher”, que “As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”.
A internet tem sido um campo fértil para contradições não tão poéticas como essas, e para mundos irreais. Nos universos do “sou mais feliz que os outros” ou “todo mundo é feliz; também quero ser” as redes sociais e os aplicativos estão fomentando a famigerada beleza digital.
Dos filtros às mesas cirúrgicas e aos consultórios psicológicos
Não é errado querer ser mais feliz ou mais bonito. A questão é saber se essa vontade é da própria pessoa ou se foi plantada pela sociedade ou, mais especificamente, pelas redes sociais. A quantidade de filtros que aplicativos como Snapchat, Instagram e TikTok lançam constantemente tem criado uma leva de pessoas neuróticas com a própria beleza, e não são apenas adolescentes.
As selfies potencializaram o mercado da harmonização facial, hoje praticada por profissionais responsáveis e não tão responsáveis. As pessoas estão com dificuldade de entender que aquele eu que veem no espelho é diferente daquele da selfie do seu celular por uma questão puramente física: a distância. E nenhuma das duas imagens, para falar a verdade, é o você que as outras pessoas enxergam.
Por isso, para alguns os filtros não têm sido suficientes. E quando percebem que a tal harmonização não foi tão harmônica assim, restam os consultórios dos psicólogos e psiquiatras.
Os filtros e as grávidas que fumam para o bem de seus filhos
Talvez não propriamente para o bem deles, mas nos anos 50 e 60, especialmente nos EUA, a publicidade de cigarros dizia abertamente que não havia qualquer problema grávidas fumarem. Em muitos dos anúncios apareciam grávidas fumando e bebês (não fumando, claro. Não chegou a tanto!). Hoje todos sabem da falcatrua que foi tudo isso, e conhecem as limitações que a publicidade para tabaco tem na maioria dos países.
Será que não está na hora de discutir a regulamentação dos filtros de aplicativos e redes sociais? A disforia de imagem ou transtorno de imagem tem crescido entre adolescentes. Tecnicamente, o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) é uma condição mental relacionada à preocupação exagerada com a própria imagem.
Em outro texto, comentei sobre o aumento de suicídios entre jovens e adolescentes ligado à evolução das redes sociais. São inúmeros e complexos fatores, óbvio, não ligados exclusivamente a esse embelezamento artificial que bombardeia as telas a todo momento. Alguns países já discutem a limitação do uso de photoshop e congêneres. Há estudiosos que dizem que tal restrição não contribui. Ou seja, o tema é polêmico. Existem tantos outros pontos que poderíamos falar, inclusive de como as pessoas se comportam em aplicativos de encontro, cheias de filtros na foto do perfil. Alguém tem dúvida que a decepção vai ser grande no momento do cara a cara?
Que, então, as pessoas se apeguem a outro soneto de Vinícius, o da Fidelidade, e possam dizer a si mesmas que “do amor (que tive)/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”, afinal, “Eu sei que vou sofrer/ A eterna desventura de viver...” (Vinícius e Jobim). Viver não é fácil (pelo menos para a grande maioria), e pensar no velho ditado que diz que “beleza não põe mesa” pode ajudar. Nos dias de hoje, entender que deixar de se apegar a tudo o que as redes sociais e seus pseudo-amigos querem impor é questão de sobrevivência e saúde mental.
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